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Lucas Faillace Castelo Branco

Artigos do Colunista

Lucas Faillace Castelo Branco

Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King's College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.

Da teoria à prática: os limites da liberdade de expressão

Como já destaquei em outros textos neste espaço, nenhum defensor sério da liberdade de expressão, por mais libertário que seja, sustenta que esse valor seja absoluto. Ser um firme defensor dessa garantia essencial à democracia não implica, necessariamente, adotar uma postura radical. É possível e até desejável que, em certas circunstâncias, haja restrições à liberdade de expressão. A questão central é: quais são essas circunstâncias? John Stuart Mill propõe como critério o princípio do dano (“harm principle”). Embora haja debates acadêmicos sobre o alcance desse princípio, especialmente ao se tentar aplicá-lo à realidade contemporânea, tão distinta da época de Mill, ele assim escreveu: “(...) até as opiniões perdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que são expressas são tais que a sua expressão constitui efetivamente uma instigação a um ato danoso. A opinião de que os comerciantes de trigo fazem os pobres passar fome, ou que a propriedade privada é um roubo, devem ser deixadas em paz quando simplesmente divulgadas na imprensa, mas poderão incorrer justamente em castigo quando ditas a uma turba exaltada reunida perante a casa de um comerciante de trigo, ou quando distribuídas entre a mesma turba sob a forma de cartazes.” Na passagem, Mill exemplifica claramente o princípio do dano. A restrição não decorre necessariamente do conteúdo da fala, mas sim das circunstâncias em que ela ocorre. Não se proíbe dizer que “os comerciantes de trigo são ladrões”; a censura só se justificaria se a afirmação, dita diante de uma multidão exaltada, tiver potencial real de causar dano. O dano a que Mill se refere não resulta do fato de as opiniões serem falsas, ofensivas ou impopulares. A restrição ao ato expressivo só se justificaria se ela incitasse diretamente à violência, ao linchamento ou tiver consequências práticas danosas imediatas, como no caso de perseguição real e concreta a alguém. O foco de Mill está no risco à integridade física de alguém e não no desconforto causado pela expressão. Esse raciocínio influenciou o juiz Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte dos EUA, que, no julgamento do caso Schenck v. United States (1919), afirmou: “a mais rigorosa proteção à liberdade de expressão não protegeria um homem que gritasse falsamente ‘fogo’ em um teatro lotado, causando pânico.” Nesse precedente, Holmes formulou o conhecido critério do perigo claro e iminente (“clear and present danger”). Conquanto à primeira vista esse critério pareça ampliar a proteção à liberdade de expressão, sua aplicação prática mostrou como conceitos abstratos podem ser interpretados de formas bastante distintas, inclusive por quem os formulou. No caso Schenck, o réu, secretário do Partido Socialista, havia distribuído panfletos contra o alistamento militar obrigatório durante a Primeira Guerra Mundial, alegando ser inconstitucional e incentivando a resistência. Ainda que os panfletos não tenham causado tumulto ou dano imediato, a Corte manteve sua condenação com base na Espionage Act de 1917, considerando que havia violado a lei ao tentar obstruir o recrutamento. A decisão foi unânime. O contraste com Mill é evidente: não havia dano direto nem incitação imediata à violência. Mesmo assim, a fala foi punida, mostrando que o critério de Holmes, naquele momento, era mais restritivo do que o de Mill. Poucos meses depois, porém, em Abrams v. United States (1919), Holmes mudou de posição. Nesse caso, imigrantes russos distribuíram panfletos em Nova York criticando a intervenção americana na Revolução Russa e pedindo greve geral nas fábricas de munição. Foram condenados por 7 votos a 2, com base no Espionage Act e no Sedition Act, sob a alegação de que estariam incitando sabotagem e prejudicando o esforço de guerra. A maioria da Corte citou o precedente de Schenck para justificar a decisão. Holmes, no entanto, dissentiu. Em seu voto, ao lado de Louis Brandeis, introduziu a famosa metáfora do “mercado de ideias”: “o melhor critério da verdade é a capacidade de uma ideia ser aceita na competição do mercado.” Holmes defendeu que o critério do “perigo claro e iminente” havia sido mal aplicado, pois não havia risco real, iminente e substancial de que os panfletos causassem dano. Ele reinterpretou o próprio teste que havia formulado, aplicando-o com mais rigor. Embora não tenha abandonado a doutrina do “perigo claro e iminente”, passou a exigir um grau mais elevado de risco concreto, em linha mais consentânea com o pensamento de Mill. Esse episódio ilustra bem a tensão entre o que uma doutrina propõe em teoria e o modo como é aplicada, até mesmo por quem a criou. Mostra também como uma ideia, uma vez lançada, pode ganhar vida própria e ser interpretada de maneira que seu criador talvez não previsse ou sequer endossasse. Apesar de Mill ter deixado seus princípios de forma clara, imaginar como ele reagiria hoje em dia a situações limites e inéditas é sempre um exercício especulativo. Princípios abstratos, como o do dano ou do perigo claro e iminente, são moldados pela cultura, pelo contexto e pela sensibilidade de quem os interpreta. Nesse campo, a resposta definitiva não existe.

18/07/2025 às 12:09

As tais patinetes

Quem costuma passear pelas praças de Salvador ou frequentar outros espaços públicos a céu aberto provavelmente já se deparou com as patinetes azulzinhas passando em alta velocidade e “tirando fino” dos pedestres. Não raro, seus habilidosos condutores – muitos, menores de idade – ziguezagueiam entre idosos, crianças e demais frequentadores, mesmo em áreas que claramente não são adequadas para esse tipo de veículo. Se não houver controle ou fiscalização eficaz, é apenas questão de tempo até que os acidentes comecem a acontecer – se é que já não estão acontecendo. Em locais mais civilizados, situações como essa são simplesmente impensáveis. Em Londres, por exemplo, os ciclistas são proibidos de pedalar, mesmo em baixa velocidade, nas áreas destinadas aos pedestres; se quiserem atravessar esses espaços, precisam descer e empurrar a bicicleta. Eu mesmo já fui advertido. Sempre haverá um policial por perto para chamar a atenção ou a população lançará olhares reprovadores. Em Zurique, lembro que saí de bicicleta com um colega durante o dia e, na volta, já à noite, nós dois acabamos empurrando nossas bicicletas porque a minha não tinha farol noturno. O próprio amigo me alertou de que eu não poderia pedalar nessas condições. Trata-se de uma exigência legal, passível de multa em caso de descumprimento, mas também de uma norma amplamente respeitada pela população, por se entender que a medida existe para garantir a segurança de todos. Recentemente li que o vereador Marcelo Guimarães Neto, em lampejo de lucidez e bom senso, apresentou uma proposta para regulamentar o uso das patinetes e de outras armas mortais semelhantes. Temo, mas espero estar equivocado, que os aloprados continuarão a exibir suas manobras pelas calçadas, por mais bem-intencionada que seja a regulamentação a ser aprovada. Suponho que ela venha também em proteção dos próprios usuários. Contudo, a experiência ensina que, a curto prazo, sem fiscalização e sem repreensão efetiva, a regulamentação corre o risco de virar só mais uma daquelas medidas “para inglês ver”. A experiência igualmente ensina que, por estas bandas, não haverá nem uma coisa nem outra. E as pessoas tendem a não reclamar dos “patineteiros” para não acabar sendo, vá saber, vítimas de reações imprevisíveis. É fundamental criar uma cultura geral de intolerância a essas imprudências, seja com patinetes ou qualquer outro veículo que coloque em risco os mais vulneráveis, especialmente os que andam por aí dividindo a atenção entre o celular, a criança, o idoso e o medo de assalto. Agora, correm também o risco de serem, sem mais nem menos, atropelados por uma patinete desgovernada. Campanhas de conscientização tendem a funcionar a longo prazo. Lembro que, no Salvador Shopping, foram adotadas diversas estratégias de comunicação para orientar as pessoas a ficarem à direita nas escadas rolantes, liberando o lado esquerdo para quem quisesse passar andando. Notei que surtiu algum efeito, depois de muito esforço. É verdade que impedir a passagem em escadas rolantes não tem o mesmo peso do uso irresponsável de patinetes, que pode comprometer a integridade física dos pedestres. Entretanto, o exemplo mostra que é possível educar e transformar mentalidades. Seja como for, parabenizo a iniciativa do vereador – mesmo sem conhecer os detalhes da proposta – e espero sinceramente que traga resultados.

31/03/2025 às 09:18

Contra o monopólio da mentira

Em tempos de narrativas, em que cada indivíduo ou grupo pinta a realidade segundo seus próprios interesses, imagina-se que alguma instituição oficial possa ser a portadora da verdade. Não há anjos neutros, desprovidos de interesses e vieses, a quem confiar a tarefa de depurar a verdade em nome de um bem coletivo. Onde a pluralidade é suprimida, a versão predominante dos acontecimentos coincide com a versão que atende aos interesses da elite dominante. O monopólio da verdade no final das contas se transforma no monopólio da mentira. Na atualidade de redes sociais, mais do que nunca, deve-se estabelecer a ampla concorrência, a fim de se impedir a unicidade da versão, especialmente a oficial ou a de seus aliados. Todos têm o direito de apresentar sua versão dos fatos. O caos da pluralidade de fontes ainda é, nas democracias, o critério mais seguro para a busca da informação. Como bem ironizou Mark Twain, em outra época: quem não lê jornal não está informado, quem lê, está desinformado. Conhecendo-se a natureza humana, despe-se da ingênua noção de que a informação sempre chega aos destinatários em sua forma bruta, sem filtros. Aliás, publicar ou não publicar um fato já é, em si, uma forma de controle da informação e, portanto, uma escolha valorativa sobre quais interesses serão promovidos ou silenciados. A democracia se fundamenta no discernimento dos cidadãos diante da pluralidade de informações – sejam elas verdadeiras, falsas ou de tons intermediários. Embora de difícil consecução, é a única alternativa capaz de minar o monopólio da mentira, ponto em que as democracias inevitavelmente perecem. Melhor a concorrência de mentiras do que o monopólio de uma suposta verdade.

08/01/2025 às 14:18

Justiça é dar a cada um o que é seu

A sentença que intitula este artigo, presente nos diálogos de Platão, é repetida com frequência, com se ela encerrasse a discussão sobre a justiça. Em verdade, ela apenas inicia a milenar discussão sobre o tema, suscitando a ideia de que a justiça envolve distribuir bens e direitos de forma adequada. Contudo, o desafio está justamente em definir o que cada um realmente merece ou tem direito. Diferentes ideologias dão respostas distintas ao problema da distribuição da justiça. Ideologias representam uma visão fundamental da realidade e, por isso, seu núcleo essencial não se sujeita a demonstrações empíricas. Elas não são a realidade, mas uma maneira de vê-la e de interpretá-la sem a qual nenhuma instituição social existiria. O economista Amartya Sen, no livro “O que é justiça”, dá exemplo que demonstra perfeitamente como a base ideológica determina o entendimento do que é fazer-se justiça. Há três crianças – Anne, Bob e Carla – que brigam por uma flauta. Anne sustenta que deve ficar com a flauta porque ela é a única que sabe tocar. Apenas com essas informações, Sen argumenta que as pessoas considerariam injusto não conferir a flauta à única pessoa que sabe tocar. Entretanto, mudando um pouco o cenário, introduz-se a informação de que Bob reivindica a flauta por ser o único pobre que não possui brinquedo algum; os demais são ricos e possuem outros brinquedos. Haveria, agora, fortes razões para dar a flauta a Bob. Em um outro cenário, ficamos sabendo que foi Carla que, com as próprios mãos, durante meses de trabalho, construiu a flauta e só depois de pronta os demais a reivindicam. Carla argumentaria, diz Sen: “esses expropriadores surgiram para tentar me tirar a flauta”. Há fortes argumentos, então, para conferir-se a flauta a Carla. Embora, rigorosamente, não haja solução auto-evidente, diferentes pontos de vista não arbitrários apresentariam seu entendimento como o “obviamente correto”. Bob receberia o apoio de um igualitarista econômico, Carla de um libertário e Anne, possivelmente, de um hedonista utilitarista. Três modos distintos de ver a realidade social. Os sistemas legais, inevitavelmente, incorporam ideologias, moldando um modo de distribuição de bens e direitos que poderia ser diferente fosse outra a perspectiva. A aceitação de determinados princípios básicos – dogmas – permite a construção de argumentos e teorias sobre o que é justo. As constituições, modernamente, conformam a visão ideológica que se quer consagrar em um sistema legal. A interpretação constitucional abrange, por conta disso, considerações políticas, históricas e filosóficas. A interpretação não nasce “ex nihilo”; elas se pautam em conceitos consagrados por ideologias. Há constituições que não encampam uma única vertente ideológica, como a brasileira de 1988, daí por que são chamadas de ecléticas. Constituições dessa espécie são repletas de conceitos por vezes conflitantes e de alta carga axiológica, trazendo maiores dificuldades de interpretação, uma vez que se amplia a possibilidade de respostas distintas para a mesma questão. A Constituição de 1988, por exemplo, assegura o direito de propriedade, desde que seja respeitada sua função social. A função social da propriedade é uma limitação ao direito de propriedade tendo em vista o bem comum. A aplicação desse elusivo conceito na resolução de conflitos pode levar a resultados distintos a depender da visão ideológica do intérprete. O que promove ou não o bem comum no contexto do direito de propriedade pode ser objeto de intensas discussões, dada a maleabilidade do conceito. A complexidade da justiça vai além do que a máxima do título aparenta significar para muitas pessoas. A justiça envolve, primeiramente, o processo de incorporação de valores em um sistema legal por meio de normas que definem o que cada um merece ou tem direito, um processo que, em regra, reflete negociações políticas, sociais e culturais. Em segundo lugar, a justiça implica a interpretação dessas normas pelo intérprete, que inevitavelmente traz consigo sua própria visão ideológica moldada por contextos históricos, culturais e pessoais, adicionando mais uma camada de complexidade. Portanto, fazer justiça não se limita a uma operação mecânica como certa leitura superficial da frase “justiça é dar a cada um o que é seu” pode sugerir.

22/08/2024 às 09:58

Verdade e democracia

Algumas pessoas acreditam que só há democracia desde que as informações que circulam reflitam a verdade. Assim, notícias falsas deveriam ser removidas do cenário público e seu difusor, uma vez identificado, punido. Ninguém duvida que informações falsas sejam nocivas para a tomada de decisão. Por outro lado, ninguém duvida que não pode haver democracia sem liberdade de expressão. Sendo a circulação de notícias falsas nociva para a tomada de decisão coletiva e, assim, para a democracia, poder-se-ia concluir que a remoção de notícias falsas do espaço público seria a melhor solução. Desse modo, a liberdade de expressão estaria garantida contanto que a divulgação de notícias espelhe a verdade. Contudo, vasta filosofia sobre o tema acentua os males dessa solução, assim como as evidências empíricas da História. A questão central da censura oficial é que caberá a alguns poucos “iluminados”, em substituição à coletividade, decidir o que é verdadeiro e o que é falso. E, como se sabe, as pessoas por vezes têm interesses dissociados da busca da verdade e, por conta disso, um julgamento que seria criterioso torna-se viciado. O argumento da suspeita do governo põe em xeque a censura por qualquer autoridade pública, que é naturalmente suspeita para a tarefa. Vale o princípio do mal maior mal menor. Se a veiculação de notícias falsas é um mal, pior ainda é conferir-se poder a qualquer indivíduo ou a grupo de indivíduos para essa função. O censor tenderá a eliminar notícias que lhes são inconvenientes e que não promovam seus interesses ou os de seu grupo. Ao fim e ao cabo, o resultado esperado é o exercício abusivo do poder, a supressão paulatina da liberdade de expressão em nome da verdade e do bem e, por fim, o esboroamento da democracia. A plena liberdade de expressão pressupõe a tolerância de notícias falsas, especialmente as que têm conteúdo de interesse público. Notícias falsas geram debate público que potencialmente trará esclarecimentos ao público. A censura traz desconfianças e mina o debate e o confronto de versões. O melhor remédio para informações falsas é mais discurso. Isso é perfeitamente compreendido pelos americanos. Eis um exemplo ilustrativo recente: em um dos processos em que Donald Trump é acusado de conspiração, a própria promotoria afirma, com todas as letras, que o ex-presidente, como todo cidadão americano, tem o direito de fazer alegações falsas sobre fraude nas eleições e de sustentar que ele foi o vencedor, além de poder tomar medidas legais contestando o resultado das urnas. O processo judicial contra ele não trata de meras consequências legais de palavras proferidas. Há inúmeros outros argumentos em favor da liberdade de expressão, como a da autonomia do indivíduo. Nenhuma autoridade pode substituir o cidadão na formação de suas convicções. O indivíduo é soberano sobre o que decide acreditar e para pautar-se na crença formada para fins de ação. Qualquer autoridade investida de poderes para retirar informações falsas do cenário público termina por subverter a lógica democrática. Presume-se sua superioridade frente aos demais cidadãos, na suposição de que devam ser tutelados. Essa relação paternalista é incompatível com o princípio da igualdade e é característica de governos autocráticos. Se uma autoridade pública tem a capacidade de avaliar o que é verdadeiro e o que é falso e a igualdade é um valor a ser perseguido em uma democracia, todo e qualquer cidadão também é igualmente capaz de escrutinizar informações e, por isso, deve ser exposto a elas para formar opinião independente. O corpo de censores iluminados e os cidadãos estão sujeitos à mesma condição: a falibilidade humana. A própria ideia de representação envolve o requisito do julgamento independente pelos representados, não sua tutela. Ao menos essa é a base na qual se fundam as democracias modernas. Suprimidos os alicerces, erode-se a democracia. Portanto, em uma democracia, a coletividade é responsável pelos erros na tomada de decisões políticas. Os cidadãos adultos têm de ter a liberdade para formar crenças, mesmo as equivocadas. É apenas nesse regime que se permite a correção, pela própria sociedade, dos erros cometidos. Já nos regimes autocráticos, a verdade, ditada de cima para baixo, é uma só. Nesse modelo, inculca-se nas pessoas uma visão ingênua do que seja a verdade, até porque o soberano ou a elite dominante, claro, jamais erra. Há, evidentemente, circunstâncias em que o exercício da liberdade de expressão ultrapassa certos limites. Nenhum teórico sério do tema advoga que esse valor seja absoluto. Entretanto, a mera falsidade de informação que tenha o potencial de promover um debate de ideias de interesse público, seja sobre pessoas públicas, seja sobre instituições, não deveria merecer intervenção do direito, muito menos intervenção drástica. As justificativas político-filosóficas da liberdade de expressão servem de termómetro para análise do grau de proteção desse valor e da própria democracia em um sistema legal. O orador grego Demóstenes sentia orgulho de os atenienses poderem criticar sua própria constituição. A possibilidade de crítica ao próprio sistema político vigente constitui o grande teste de uma democracia.

18/04/2024 às 05:57

Sobre a História

Há quem imagine que a História consista em relato de fatos que se sucedem. Mas não é assim. À medida que o historiador estabelece relações de causa efeito, por exemplo, ele está fazendo escolhas e iluminando o acontecimento sob determinada perspectiva. Não se trata, portanto, de simplesmente descrever o que aconteceu, mas sim de interpretar o que aconteceu, de explicar. Ainda que dois historiadores se pautem nas mesmas fontes, a explicação pode divergir. Daí que se diz que não há a História da Revolução Francesa, mas várias Histórias da Revolução Francesa. A matéria-prima bruta, os fatos, é uma questão empírica sujeita ao critério de verdade e falsidade. Já a interpretação do acontecimento, por meio da qual se explica mediante recortes da realidade, ressaltando-se certos aspectos, não. A História, portanto, embora se volte para acontecimentos do passado, não é um saber estanque. Não apenas porque os fatos podem ser interpretados sob diferentes óticas, como também porque novas descobertas documentais e arqueológicas podem mudar explicações já bem estabelecidas. A História está sendo construída a todo o tempo por seus profissionais, conforme novas descobertas e perspectivas emergem. Até mesmo o advento de novos conceitos teóricos refina o olhar sobre a realidade. Heródoto não se valeu do conceito de classe social, inexistente à sua época. Vista dessa maneira, despe-se da noção ingênua de que a História é uma só e que ela tem a nos oferecer a Verdade. A História é uma disciplina dinâmica, aberta a novos ângulos, perspectivas e conceitos, desafiando a ideia de uma verdade única e absoluta.

01/10/2023 às 19:24

A liberdade de expressão segundo Thomas Scanlon e a democracia

Todo autor sério que trata da liberdade de expressão admite que a proteção desse valor implica aceitar algum dano decorrente de seu exercício. A liberdade de expressão só é invocada quando há atos expressivos controversos que geram incômodo. Antes de ser uma questão legal, a liberdade de expressão é um problema filosófico. Alegados simpatizantes da liberdade de expressão tratam de defendê-la ressalvando que o limite de seu exercício legítimo é a lei. Essa fórmula aparentemente sedutora – e obviamente simplista – não paira em pé. O ponto crucial é saber-se se a lei (incluindo-se as decisões judiciais) não suprime substancialmente o exercício da liberdade de expressão, tornando-a mero conceito vazio sem correspondência na realidade. Afinal de contas, até King Jong Un poderia dizer que na Coréia do Norte existe liberdade de expressão exercida nos limites da lei. Há que se examinar a efetiva proteção da liberdade de expressão por uma sociedade, pois a análise formalista da lei não é critério decisivo. Isso também se aplica aos limites de tolerância aos danos gerados por atos expressivos. A fundamentação dessa análise são conceitos político-filosóficos arraigados no pensamento ocidental. Thomas Scanlon, filósofo estadunidense, considera a liberdade de expressão um valor em si mesmo, ao contrário de John Stuart Mill, que a defende por motivos utilitários. Tendo valor intrínseco, a proteção da liberdade de expressão precisa independer dos resultados advindos de seu exercício. Scanlon sustenta sua teoria na autonomia do indivíduo. O governo legítimo, defende o autor, é aquele cuja autoridade é reconhecida pelos cidadãos enquanto agentes iguais, autônomos e racionais. Na qualidade de indivíduos autônomos, os cidadãos são soberanos para decidir no que acreditar e para sopesar as razões conflitantes que servem de base para a ação. Isso não quer dizer que o filósofo defenda que a liberdade de expressão seja irrestrita. Quando causam dano objetivo, é legitima a proibição de certos discursos—casos que impliquem dano físico direto ou prejudiquem uma pessoa por colocá-la em situação de ridículo público. Por outro lado, há atos expressivos danosos que não devem ser proibidos. São eles os que possam inspirar (i) a formação de crença falsa e (ii) ações praticadas porque o indivíduo foi levado a acreditar ou a aumentar sua crença em que elas valiam a pena ser praticadas. A proibição violaria a autonomia do indivíduo, como a violaria também a proibição de discursos que advoguem ações ilegais, já que isso privaria os cidadãos de ponderar as razões para um julgamento independente sobre se a lei deve ser obedecida. Advogar ações ilegais é diferente de praticar ações ilegais ou conferirem-se meios para a prática de ações ilegais. O que Thomas Scanlon defende, a partir do argumento da autonomia, é a incongruência do paternalismo estatal diante da racionalidade dos cidadãos. A interferência do Estado só é legítima em situações danosas especiais. Assim, a soberania dos cidadãos autônomos a respeito do que decidem acreditar e de como agir em face da convicção formada é o motivo pelo qual a circulação de informações falsas e a potencial prática de ações com base nelas não são razões suficientes para a censura. É nessa capacidade racional de escolha de seus cidadãos, considerados iguais para esse fim, que os regimes democráticos são ancorados. Ao se eliminarem as ideias fundamentais que sustentam a democracia, ela, a democracia, não pode se sustentar. Como diz um amigo, não dá para se retirar o prego e esperar que o quadro permaneça pendurado.

04/07/2023 às 10:59

País da tolerância

Fato recente no Brasil que gerou grande repercussão foi o da estudante de medicina da USP que teria desviado cerca de um milhão de reais do fundo da formatura dos colegas. A aluna confessou o golpe. Notícias dão conta de que a aluna retornou às aulas, causando indignação entre os estudantes da instituição. A USP, questionada, respondeu que o trancamento ou reativação de matrícula "é uma decisão exclusiva de qualquer aluno”. Ela voltará a ter contato com pacientes em suas atividades como discente. O fato me lembrou um caso ocorrido em 2013 na Universidade de Leicester, na Inglaterra. Um estudante de medicina publicou em sua rede social mensagem ameaçadora contra outro colega ao citar a frase de uma personagem de filme representada pelo ator Liam Neeson. A frase “eu vou procurá-lo, encontrá-lo e matá-lo” teria sido proferida em defesa de um amigo que tinha uma rixa com o destinatário da ameaça. Apesar de muitos estudantes terem interpretado como uma brincadeira, o comitê de ética da Universidade de Leicester expulsou o aluno, alegando que ele era inábil para continuar o curso e praticar a medicina. Irresignado, o estudante ingressou com ação judicial tendendo reverter sua expulsão. Em grau de recurso, após perder em primeira instância, ele teve mais um revés. O magistrado entendeu que a ameaça foi inaceitável e sublinhou a inaptidão do ex-aluno para exercer a medicina. A leniência com que se tratam os desvios éticos no Brasil contrasta com o rigor inglês, talvez excessivo para o caso relatado, mas de qualquer modo exemplar. No Brasil, o perfil ético questionável da aluna não parece ser impeditivo para a prática da medicina. E no final das contas, certamente há um punhado de argumentos jurídicos mirabolantes a seu favor capaz de anular qualquer decisão administrativa da USP de expulsá-la do curso.

24/04/2023 às 19:10

Os atos antidemocráticos de cada dia

Os atos antidemocráticos testemunhados recentemente em Brasília causaram grande prejuízo ao patrimônio público. Os arruaceiros merecem punição na forma da lei, como não poderia deixar de ser. Entretanto, criou-se um espantalho de que a democracia brasileira, capenga que seja por outros milhões de motivos, correu grave risco de perecer por conta do episódio. O espantalho favoreceu a construção de narrativa de defensores fervorosos e bondosos da democracia contra antidemocratas maldosos e, a reboque, contribuiu para o aumento de poder desmedido de algumas figuras públicas. O quebra-quebra só foi possível por conta da leniência das forças de segurança locais, cuja responsabilidade está sendo apurada. Tão logo elas despertaram do sono profundo, os arruaceiros foram debandados. Não tinham a menor chance de prevalecer. Qualquer golpe de Estado, sem apoio de quem tem o poder da força, é impossível. Hoje, não há gente que consiga medir forças com o poder armado do Estado organizado. Mesmo a guerrilha, que possui poder armado e se alimenta do terrorismo como forma de barganha, não toma, por si só, o poder. Ou seja, os atos antidemocráticos vistos recentemente não fizeram nem cosquinha na mambembe democracia brasileira. Prova disso é que, embora o plenário do STF tenha sido fisicamente destruído, em poucas horas já havia decisão judicial afastando o governador do Distrito Federal da função. As instituições democráticas não sofreram revés e continuam funcionando tão mal como sempre.  A depredação criminosa em Brasília, por outro lado, não é mais grave do que os atos antidemocráticos praticados todos os dias nos bastidores do poder, em todas as esferas e sem exclusividade de matiz ideológica. Os desvios sistemáticos de dinheiro público, as compra de votos (de parlamentares também, é verdade), as decisões judiciais questionáveis, os privilégios e os conchavos espúrios entre os poderes – inclusive entre o público e o privado – são a amostra do cotidiano brasileiro. Estes atos sim, praticados com um pouco mais de requinte do que um quebra-quebra, solapam a democracia brasileira e minam por completo a possibilidade de se ver, algum dia, um Brasil minimamente decente. Mais do que tudo.

31/01/2023 às 20:47

A falta de educação dos brasileiros e o direito à privacidade

A hostilização de figuras públicas, políticos e artistas, em momentos de lazer, por motivos político-ideológicos, virou moda no Brasil, quase um dever cívico. Esse comportamento só revela o que disse Sérgio Buarque de Holanda: no Brasil a democracia é um equívoco. Ou seja, não se criou uma cultura democrática genuína, um ambiente minimamente propício para que a democracia florescesse. Ela foi importada por decreto e não encontrou acolhida na mente e no coração de nosso povo. Na concepção do brasileiro, a única democracia que serve é aquela em que sua vontade predomina, a qualquer custo. Visões de mundo contrárias, imagina-se, devem ser aniquiladas. Cada um quer colonizar o outro para enfiar-lhe por goela abaixo sua pauta. Mas convém dizer que falta de educação não é característica dos caudatários de um partido ou linha ideológica. Os maus educados estão distribuídos igualmente em todos os lugares. De tempos em tempos, um segmento se sobressai no noticiário. Por outro lado, nenhum sistema de ideias está imune a crítica. A democracia, ou qualquer forma de governo, pode e deve ser criticada. Não só como ideia. Os agentes do estado responsáveis por fazer a roda gigante girar merecem vigilância constante por meio da crítica ácida. Isso, entretanto, não se confunde com a hostilização de pessoas, mediante xingamentos e ameaça de agressão, corpo a corpo, ultrapassando-se o limite do civilizado e adentrando-se na ilegalidade. Um dos temas intrigantes no direito é o direito à privacidade de pessoas públicas. Uma das facetas do tema diz respeito a veiculação de fotografias de pessoas públicas pela imprensa, muitas vezes em momento de intimidade com a família, ainda que em local público. Tais conflitos envolvem a ponderação de interesses: a do público em obter informação, de um lado, e o direito à privacidade da pessoa pública, de outro. O interesse público ganha peso a depender do valor informacional do que se veicula. Se há o propósito único de entreter, “matar a curiosidade”, sem o potencial de contribuir para o debate de interesse geral da sociedade, o direito à privacidade deve prevalecer. Por isso não se deve confundir interesse público com interesse do público, este sempre ávido por bisbilhotices. Um caso interessante foi o da princesa Caroline de Mônaco, em razão de uma série de fotos publicadas por tabloides, sem o seu conhecimento, retratando sua vida cotidiana. O caso chegou à Corte Europeia de Direitos Humanos, que reverteu a decisão dos tribunais alemães, considerando que houve violação do artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Como a princesa não estava exercendo função oficial de Estado e o conteúdo das fotografias não contribuía para um debate de interesse geral, ela não tinha que tolerar, no contexto, a vigilância da imprensa. Prevaleceu a proteção da privacidade e da vida familiar. Há algumas peculiaridades do caso que mereceriam destaque. Basta sublinhar, aqui, que nenhuma figura pública perde totalmente o direito à privacidade, ainda que esteja em público. Se é assim para fotografias feitas de forma não invasiva, à socapa, por veículo de imprensa, com muito mais razão quando indivíduos munidos de câmera molestam outros cidadãos em bares, restaurantes, hotéis, impedindo o tempo de lazer com os seus e tolhendo-lhes a liberdade de ir e vir. Aí há clara violação do direito à privacidade e de outros direitos, com possíveis repercussões criminais, merecendo correção judicial. Quanto à falta de educação, essa é mais difícil de ser corrigida.

15/12/2022 às 11:47

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